Meses porteños
Sigo com uma percepção diferente do tempo. Talvez por estar em outro país, talvez por estar sozinha. Procuro aproveitar o máximo do prazer que é caminhar pela cidade, ciente de que será uma das coisas que mais sentirei falta. Também gosto do clima. Percebi que em Buenos Aires a amplitude térmica é menor do que em Curitiba — que condensa todas as estações do ano em um dia —, principalmente na primavera com temperaturas mais amenas.
A arquitetura dos prédios nunca me deixa esquecer que não estou em casa. Aliás, que não estou no mesmo tempo. E a quantidade de cafés também. Não é exagero dizer que a cada esquina, passo por pelo menos duas padarias e um café. É irresistível não querer tomar um café com medialunas. Sin relleno.
Me acostumei com os passeadores de cachorros, com os carrinhos de chá, com os kiosquos, doces de leites e com os nomes Junín, Puan, Puerreydón, Corrientes e Córdoba. Não me acostumei com a conjugação dos verbos no subjuntivo, haya, sepa, vaya.
Visitei a ESMA, lugar que funcionou como centro clandestino na ditadura argentina por meio de um plano sistemático de tortura, sequestros e desaparecimentos. Atualmente funciona como museu dos direitos humanos e o próprio edifício é enfatizado como “prova jurídica”. Depois, fiquei sabendo por um conhecido que, em 1978, durante a final da Copa, os prisioneiros políticos escutavam os gritos dos torcedores comemorando a vitória da Argentina ali do lado, no Monumental, enquanto eram torturados lá dentro.
Procurei estudar o imaginário no doutorado, conceito que é ainda tão abstrato pra mim. Mas estar naquele local, olhar para as paredes, os quartos apertados, pensar sobre os prisioneiros encapuchados, assistir os depoimentos do julgamento de 1985, entender o movimento das madres y abuelas de plaza de Mayo me fez pensar ainda mais sobre o que imaginamos que foi a ditadura. Como elaborar um pensamento a partir de imagens sobre aquilo que é irrepresentável?
Visitei também os lugares que permitem pensar sobre o mundo a partir das práticas artísticas. Vi obras de artistas brasileiras e brasileiros. Não esperava que tanto a edição n. 1 da Revista de Antropofagia, quanto o Abaporu, fossem tão pequenos.
Pensar sobre a dimensão das coisas tem sido especialmente importante perto da hora de ir embora. Quantos cafés existem em Buenos Aires? Quantos verbos no subjuntivo aprendi a conjugar? Quantos desaparecidos não serão mais encontrados?
Certamente esse tempo e esse espaço serão diferentes se um dia eu voltar. Espero que as medialunas sigam, ou melhor, que sejam días rellenos.
E os doces deleites.