Orlando Azevedo e a contracultura em Curitiba

Ariadne Grabowski
7 min readJul 16, 2021

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Paulo Leminski, Ivo Rodrigues, Orlando Azevedo, Carlos Gaertner. Curitiba, 1970. Autoria: Fernando Rabelo (2017). Fonte: Acervo Gazeta do Povo

Em uma fotografia, Orlando Azevedo figura entre alguns nomes que me são familiares, como o do poeta Paulo Leminski (primeiro à esquerda) e os músicos Ivo Rodrigues (segundo à esquerda) e Carlos Gaertner (à direita). No meu contato telefônico com Orlando, um dos destaques rememorados por ele, foi o período de 10 anos (1969–1979) que passou com a banda “A Chave”, cujos integrantes são as figuras presentes nesta fotografia, apresentados carinhosamente por ele como “Paulinho, Ivo e Carlão”. O quarteto, na verdade, era formado por Orlando Azevedo (bateria), Carlos Gaertner (baixo), Paulo Teixeira (guitarra e vocais), e pelo vocalista Ivo Rodrigues (1949–2010). Na foto, vemos também o poeta Paulo Leminski (1944–1989), que foi parceiro da banda, ao lado dos músicos.

Datado de 1970, encontrei este registro no blog do fotógrafo e autor da imagem, Fernando Rabelo. A fotografia também aparece em um documentário sobre a banda, “Todo Roqueiro é Gente Fina: história da banda A Chave” (2014), dirigido por Yuri Vasselai. “Era difícil provar que A Chave tinha sido um expoente no cenário do rock, porque as informações corriam muito no boca a boca”, conta Vasselai.

A presença de Paulo Leminski na fotografia, fato que me chamou atenção, registra uma parceria no projeto chamado “Em Prol de um Português Elétrico”, onde Leminski deu início ao processo de criação das letras das músicas da banda. Particularmente, esta imagem me fez pensar a respeito de como a figura de Orlando, naquele momento baterista da banda, lado a lado de personagens quase lendários da cidade, atuava na cultura underground e contracultural de Curitiba. As práticas do fotógrafo, suponho, que com 13 anos já tinha um estúdio fotográfico, se misturavam entre a música e a fotografia.

Na época desta imagem, Orlando morava com amigos em uma casa, chamada de “Casa Branca”, onde o estúdio da banda foi construído junto com um laboratório fotográfico, com direito à câmera escura para revelação e ampliação de fotos em preto e branco, além de “uma mini biblioteca na sala do andar superior e uma mini galeria com quadros e desenhos de artistas curitibanos que interagiam com a banda como parceiros”. Assim, olhando para esta fotografia, me perguntei como eram as interações sociais de Orlando e o modo como ele estava inserido no epicentro cultural curitibano, onde, naquele momento, existiam políticas públicas que estimulavam práticas culturais. Após ler algumas histórias citadas por ele e Carlão, descobri que Gilberto Gil, quando apresentou seu show da turnê “Expresso 2222” em Curitiba, em uma temporada de três dias no Teatro da Reitoria da UFPR, chegou a visitar a tal “Casa Branca”. Penso em todas essas conexões entre músicos, artistas, turnês e celebridades e sobretudo, a respeito da presença de Orlando em “uma banda de rock”. Uma banda, segundo me contou em entrevista, “bastante importante no cenário curitibano”.

"Momento 68". Fonte: Diário do Paraná (1968). Acervo da Hemeroteca Digital.

Essa reflexão me levou a pensar também sobre o circuito cultural de produção fotográfica, artística e musical curitibana, no qual Orlando parecia participar ativamente. Seu contato com uma rede de pessoas propiciou, entre outros aspectos, o acesso à inúmeros espaços de troca e aprendizado. Para além disso, as condições materiais e oportunidades de vida também são importantes para compreender o percurso do fotógrafo até aqui.

Orlando Azevedo nasceu na Ilha Terceira de Açores, em Portugal e esteve envolvido com a fotografia desde muito cedo. “Sabe quando era criança, já criança eu ficava fascinado olhando as revistas National Geographic Magazine que meu pai assinava e o meu avô também tinha praticamente a coleção desde o primeiro número”. Azevedo chegou ao Brasil com 13 anos, pois seu pai veio para o país em função de uma missão da Food and Agriculture Organization (FAO), um departamento das Nações Unidas. “Eu comecei a me apaixonar por imagem, principalmente depois de grandes vertentes que são uma constante o meu trabalho, que é exatamente: o ser humano e a paisagem (…) ou seja, patrimônio humano e natural” Orlando, que fez um curso de fotografia por correspondência, me contou que

“não tinha essas coisas todas que nós temos hoje, não tinha naquela época, naquela época tinha apenas um curso por correspondência que era do Instituto Universal”.

Ele trabalhou como repórter até entrar para a banda “A Chave” e depois deste período, voltou a se dedicar exclusivamente à fotografia, no começo dos anos 1980. Ele recorda que fez muita propaganda e passou a atender “grandes contas”, como Boticário, Bamerindus, Batavo e Britânia”. Até que foi convidado pelo prefeito Rafael Greca, no começo dos anos 1990, para ser diretor de Artes Visuais da Fundação Cultural de Curitiba.

“eu já também estava querendo me afastar da fotografia de propaganda porque é uma fotografia muito mentirosa, entende? (…) que você tem que criar para despertar o apetite de consumo no outro”.

Orlando permaneceu na Fundação Cultural de Curitiba por 4 anos, período em que trabalhou na Fundação Cultural de Curitiba, momento significativo onde o Museu da Fotografia Cidade de Curitiba (1998) foi inaugurado. Orlando realizou a Bienal Internacional de Fotografia, nos anos de 1996, 1998 e 2000. Nestas edições, os fotógrafos e fotógrafas participantes eram convidados por ele a doar algumas de suas produções, que foram incorporadas ao museu ao longo dos anos, compondo um acervo fotográfico. Entendo que, justamente por estar inserido em um circuito de produção, circulação e consumo fotográfico curitibano naquele período, foi que Orlando pode estabelecer estes convites e receber um retorno receptivo por parte dos (as) fotógrafos (as).

Encontrei, ao pesquisar documentos no Centro de Documentação e Pesquisa Guido Viaro, as correspondências entre Orlando, em nome da Fundação Cultural de Curitiba, e os (as) fotógrafos (as) convidados (as) para a Bienal Internacional de Fotografia. Essas cartas eram enviadas por correio ou fax e eram respondidas da mesma forma ou, ainda, escritas à mão. Por meio delas, descobri que muita coisa era negociada naquele espaço. Questões técnicas sobre as obras, quais suportes seriam usados nas exposições, quais fotos seriam doadas ou vendidas (a maioria custava em média R$200 reais por fotografia), croquis de plantas com indicações e sugestões de onde ficariam as fotografias de cada fotógrafo (as) nos espaços expositivos, descrições informais de ideias para workshops, entre outros. Pude verificar ainda, que, além de intimidade, muitos (as) dos (as) artistas reiteravam nestas trocas, sentimentos de estima, admiração ou amizade com Orlando. Alguns ainda aproveitavam para recomendar a Orlando outros “talentos” na área da fotografia, ampliando ainda mais esta rede de pessoas que participavam das atividades fotográficas em Curitiba.

Além dessas oportunidades, a formação de Orlando durante sua trajetória profissional foi atravessada por outras experiências, como a produção de onze foto-livros. Um destes foto-livros é a “Coleção Coração do Brasil” (2002), fruto de um projeto de longo prazo iniciado em 1999 e concluído em 2002, no qual Orlando fez diversas expedições pelo Brasil em conjunto com o jornalista Fabiano Camargo. “Tento fazer um mapeamento poético do Brasil oculto”, explicou o fotógrafo em uma entrevista para a Folha de Londrina (2012). Sobre a realização deste trabalho, houve dificuldade de captação financeira para viabilizar o projeto pela Lei Rouanet. A proposta contava a princípio apenas com parcerias privadas e recursos próprios, mas pode ser concluída após a contrapartida do Programa Conta Cultura, programa estadual que viabiliza o patrocínio de projetos já aprovados pela Lei Rouanet. Orlando conta que vendeu dois carros para poder “segurar o projeto” e pontua que a fotografia autoral “exige um estudo aprofundado, uma metodologia e investimento”.

Considero que estes recursos apontados pelo fotógrafo, são indicativos das condições que tornaram possível sua trajetória profissional. Circunstâncias não somente moldadas por condições materiais, mas também por uma série de relações com pessoas, interlocução com figuras públicas, possibilidade de acesso à determinados espaços e práticas, entre outros aspectos, que delinearam um campo de possibilidades dentro de uma conjuntura histórica, social, política e econômica específica.

Para compreender esta intrincada relação entre a trajetória individual e as conjunturas socioculturais, me apoio em Gilberto Velho (1994), que apresenta a ideia de projeto em função de um campo de possibilidades. O autor classifica projeto como uma “conduta organizada para atingir fins específicos”, podendo ser individual ou coletivo, e campo de possibilidades como um “espaço para formulação e interpretação de projetos” (VELHO, 1994, p. 40). Ou, em outras palavras, as alternativas que se apresentam ao indivíduo a partir de processos sociais mais amplos.

Não pretendo me aprofundar na biografia de Orlando Azevedo, mas ressalto estas questões, pois julgo terem sido importantes para o amadurecimento de algumas ideias, como por exemplo, o entendimento de que o percurso de vida de uma pessoa não ocorre de maneira linear, contínua ou homogênea. Portanto, entendo que estes processos devem ser compreendidos em suas multiplicidades, levando em consideração os complexos processos de negociação e construção que se desenvolvem com e constituem toda a vida social (VELHO, 1994).

Referências

VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose. Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

FOLHA DE LONDRINA. Mapeamento poético do Brasil. Folha de Londrina. 25 de setembro de 2012.

Entrevistas e depoimentos

AZEVEDO, Orlando. Entrevista concedida a Ariadne Fernanda de Souza Grabowski, 09 mar. 2021.

[*] Este ensaio tem por base minha investigação de mestrado em curso no Programa de Pós Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.

Sobre a autora: Mestre em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná — UTFPR, na linha de pesquisa Mediações e Culturas. É integrante do grupo de pesquisa Design e Cultura (UTFPR) e do projeto Cartografias da Cultura Material Recente (UFPR). Possui graduação em Bacharelado em Design pela UTFPR, com habilitação em design gráfico e de produto. E-mail: afsgrabowski@gmail.com.

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