por uma leitura sociológica possível da fotografia
As imagens deste ensaio pertencem ao “Catálogo do Acervo do Museu de Fotografia Cidade de Curitiba” (2019), publicação que é atualmente uma fonte de pesquisa para minha investigação de mestrado em curso [1]. Folhear um catálogo de um acervo fotográfico, revelou-se um espaço de estudo, pesquisa e reflexão que me constitui enquanto leitora, observadora e pesquisadora. Com esse movimento, passei a identificar possíveis marcadores estabelecidos na escolha das imagens, me atentando para as representações das fotografias. Depois da leitura de José de Souza Martins (2013), procurei ampliar minha percepção a respeito das imagens de trabalhadores que estão nesta publicação, entendendo-a como uma construção imaginária, dito de outro modo, imagens como possibilidades potentes de imaginação, fantasias e sonhos.
“Sonhos de sorte” foi a legenda que me chamou atenção quando me debrucei sobre a série de Paula Sampaio, que retrata o trabalho infantil. Contudo, as legendas das fotografias, embora apresentem informações como datas, espaços, temporalidades, dimensões e inventários, poucas vezes informam sobre fazeres cotidianos daqueles que estão representados, tampouco suas identidades. Ao acessar a obra da autora, descobri que, em um de seus ensaios fotográficos, sua preocupação foi retratar o trabalho na construção de estradas na Amazônia, atenção materializada no projeto “Antônios e Cândidas têm sonhos de sorte” (2004), que narra histórias sobre o cotidiano de pessoas, entrelaçando imagens, cartas e histórias orais.
Descrições de projetos como esse, que explicitam trabalhos, memórias e narrativas das comunidades fotografadas, não estão incluídas na apresentação das imagens no catálogo. Ainda que sua materialidade permita diferentes leituras, combinações e deslocamentos, sem essas informações, a imagem por si constitui um documento insuficiente da realidade social, como sugere Martins (2013, p. 30):
“É na contradição entre o verossímil e o ilusório, e na sua unidade,
que propõe a leitura sociológica possível da fotografia. Sem a
referência teórica apropriada, que permita interpretar essa
contradição, a fotografia não passará de mera e vazia ilustração
de texto.”
Ao selecionar imagens com a temática do trabalho — escolhas circunscritas pela mediação do catálogo, tratamento estético das imagens, projeto gráfico e editorial — , percebi que esta categoria é representada, em alguma medida, de uma maneira particular que atribui o esforço físico em espaços rurais, industriais e comerciais. Nas imagens de Lalo de Almeida, assim como na fotografia de Christian Cravo, o destaque está nos fazeres manuais. Nas imagens de Marcelo Buainain e Nego Miranda, noto campos abertos, enxadas, ambientes industriais e transporte manual de cargas. São perfis de trabalhadores e trabalhadoras anônimos em condições precárias, expressas em mecanismos como o trabalho forçado.
Considerando essas características, é possível pensar que o catálogo sublinha uma noção específica de trabalho: representações relacionadas à condições quase sempre degradantes e exploratórias. A seleção, indexação e circulação dessas imagens, podem essencializar, reduzir ou naturalizar o imaginário acerca do trabalho, operacionalizando práticas que produzem tais significados específicos, como o de que a categoria trabalho seria sinônimo de atividades pesadas, braçais e forçadas, que aconteceria quase sempre em circunstâncias adversas.
Os (as) autores (as) destas imagens, de modo geral, se propõem como aliados em lutas que são externas às situações fotografadas [2]. Nomes como o de Genivaldo, que sonhava em ser jogador de futebol, apresentado na fotografia de João Ripper, me foram informados por intermédio deste ensaio ao contatar o autor, permitindo uma ampliação do sentido que atribuia à imagem. A partir do pedido do autor para que a imagem jamais fosse “usada para defender de forma imparcial o trabalho escravo”, ressignifiquei a imagem outra vez. A ausência dessa informação e da história de atuação do fotógrafo, são elementos que tensionam, não apenas possíveis categorias, representações e marcadores como o trabalho, mas qual a própria ideia de fotografia que o museu compreende, percepção que me parece próxima de uma expressão fotodocumental.
O deslocamento entre o que eu vejo nestas fotografias e o que os autores me dizem para ver, me fez refletir acerca dos processos que se passam neste intervalo e que informam meu olhar de um modo distinto do de seus produtores. O que imagino a respeito dos trabalhos, vivências e trajetórias dessas pessoas, possui uma significativa relação com o factual.
Contudo, conforme apontado por Martins (2013), essa ilusão, como documento visual, é polissêmica, o que demanda uma sociologia do conhecimento visual para ler e interpretar a imagem, em particular a fotográfica.
As imagens se colidem com outras imagens revelando contradições, tensões e descontinuidades. A respeito dessa noção, estou de acordo com Martins (2013), ao propor que é nestes confrontos de significados e significantes, que reside a dimensão propriamente sociológica da fotografia como documento. A infinidade de desencontros, desencaixes, desarranjos provocados pelas imagens do “Catálogo do Acervo do Museu de Fotografia Cidade de Curitiba”, constroem sentidos a serem lidos como textos que narram a respeito dos trabalhos e ofícios, das histórias e personagens, das pessoas e das materialidades, dos saberes e das práticas, dos lugares e das temporalidades. A partir das imagens acessadas, concordo que é que é necessário “muito mais do que uma foto para compreender o que uma foto contém” (MARTINS, 2013, p. 174). Martins (2013) aponta o reconhecimento da imagem fotográfica como documento do imaginário social, e não preponderantemente como documento da factualidade social. Neste espaço, onde produzimos, reproduzimos e atualizamos nosso entendimento de trabalho, a imagem fotográfica pode ser debatida, a partir da sua capacidade de despertar o imaginário humano para as representações.
[1] Este ensaio tem por base minha investigação de mestrado em curso no Programa de Pós Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.
[2] Escrevi para os (as) fotógrafos (as), a fim de pedir autorização de uso das imagens, no entanto nem todos (as) responderam. As imagens selecionadas para este trabalho estão autorizadas pelos (as) autores (as).
Sobre a autora: Mestranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná — UTFPR, na linha de pesquisa Mediações e Culturas. É integrante do grupo de pesquisa Design e Cultura (UTFPR) e do projeto Cartografias da Cultura Material Recente (UFPR). Possui graduação em Bacharelado em Design pela UTFPR, com habilitação em design gráfico e de produto. E-mail: afsgrabowski@gmail.com.
Referências
MARTINS, José de Souza. Sociologia da Fotografia e da Imagem. São Paulo: Editora Contexto, 2013.
VIEIRA, Maurício et al (Org.). Catálogo do Acervo Museu da Fotografia Cidade de Curitiba. Curitiba: Id Editora Curitiba, 2019.
Fotografias
[01] Paula Sampaio. Antônios e Cândidas tem sonhos de sorte. Transamazônica, PA (1990).
[02] Marcelo Buainain. Índia — Quantos olhos tem uma alma (1999/2000).[03] Marcelo Buainain. Índia — Quantos olhos tem uma alma (1999/2000).[04] Marcelo Buainain. Índia — Quantos olhos tem uma alma (1999/2000).[05] Marcelo Buainain. Sem título/Untitled — Série Carvoeiros (1998).
[06] Marcelo Buainain. Sem título/Untitled — Série Carvoeiros (1998).
[07] Marcelo Buainain. Sem título/Untitled — Série Carvoeiros (1998).
[08] Christian Cravo. Salvador (1992/1998).
[09] Lalo de Almeida. Tosquia I (1997).
[10] Lalo de Almeida. Tosquia II (1997).
[11] João Ripper. Criança carvoeira trabalhando, seu sonho era ser jogador de futebol. Fazenda Financial, Ribas do Rio Pardo, MS (1998).
[12] Nego Miranda. Sem título — Exposição Folhas Amargas, Havana, Cuba (1995–1996).
[13] Nego Miranda. Sem título — Exposição Folhas Amargas, Havana, Cuba (1995–1996).
[14] Nego Miranda. Sem título — Exposição Folhas Amargas, Havana, Cuba (1995–1996).
[15] Nego Miranda. Homens Verdes — Exposição Folhas Amargas, Engenho Fontana, Curitiba, PR (1980–1996).